Do que é feita a memória
Snippets of videos become visual sheet music for the compositions of Flavio Lazzarin in his project Do que é feita a memória (What memory is made of), which now gains a new layer, assembling in one single video the sheet music and the filming of his live performance at the terrace of Leviatã, on April 2018.
Recortes de vídeos transformam-se em partituras visuais para as composições de Flavio Lazzarin no projeto Do que é feita a memória, que agora ganha uma nova camada ao unir em um único vídeo a partitura e o registro da performance ao vivo que aconteceu na laje da Leviatã, em abril de 2018.
Hours prior to Flavio Lazzarin’s performance, Rayra Costa, Thiago Salas, Iago Mati and himself talked about Do que é feita a memória, about improvisation and about the texture of the walls swallowing Leviatã:
Horas antes da performance de Flavio Lazzarin, ele, Rayra Costa, Thiago Salas e Iago Mati conversavam sobre Do que é feita a memória, sobre improvisação e sobre a textura das paredes dos prédios que engolem a Leviatã:
Rayra Costa: Você diz que, depois, não tem mais por que usar essas imagens...
Rayra Costa: You say that there’s no reason why using these images afterwards…
Flavio Lazzarin: Não é que não pode, mas se eu tocar agora de novo, eu vou praticamente fazer a mesma coisa, sabe?
Flavio Lazzarin: It’s not that you can’t use, but if I play it again right now, I’ll pretty much do the same thing, you know?
RC: Sua ideia é tocar de maneira improvisada?
RC: Your idea is to improvise?
FL: É, é.
FL: Yeah, yeah.
RC: Você ter esse elemento do vídeo te ajuda a marcar um milhão de coisas, movimentos...
RC: Having this element of video helps you beat a thousand things, movements…
FL: Ou abstrair.
FL: Or to free from.
RC: Eu acho que ajuda, porque você tem ele como guia, né?
RC: I think it helps, because you have it as a guide, right?
FL: Quando eu estava construindo o vídeo, pensei "eu não quero ficar passando", sabe? Leva o vídeo, abre, fica meio ensaiado… Porque aí vai ficar cada vez mais sincronizado, e já é sincronizado, né?
FL: When I was putting together the video, I thought “I don’t want to go skipping videos”, you know? To take the video, open it like it’s rehearsed… Because then it’ll become more synced , and it’s already synced, right?
Thiago Salas: Mas tudo bem também, né?
Thiago Salas: But that’s fine, right?
FL: Sim, sim.
FL: Yeah, yeah.
Iago Mati: Mas você gostaria que o vídeo aparecesse de forma aleatória?
Iago Mati: Would you like the video to show randomly?
FL: Não aleatória, sabe? Mas também não tão marcado. Acho que é esse meio termo. Aleatório eu não veria muito o porquê de estar projetando e fazendo o vídeo.
FL: Not randomly, you know? But not too marked. I think that’s the balance. Randomly, I wouldn’t see why projecting and making the video.
FL: Então, acredito que eu curto também esse lance meio sincronizado.
FL: I believe I enjoy this, kind of synchronized.
IM: Mesmo as imagens sendo suas… De uma certa forma, você já conhece elas.
IM: Even though the images are yours... You already know them in a way.
FL: É. E parece que, cada vez mais, vai ficando mais viciado. Se for ficar usando o mesmo vídeo então. Por isso que eu acho interessante Do que é feita a memória, de cada apresentação ser uma montagem diferente da memória. Porque o caminho também vai ser outro do som, sempre. Vai ser sempre uma partitura nova, né, vamos dizer. Naquela semana, você já vai ter editado os vídeos, ter feito todo o caminho dele… A performance já começa ali.
FL: Yeah. It seems that you get more vicious each time. Even more if I keep using the same video. That’s why I find it interesting, Do que é feita a memória, each presentation is a different assembly of the memory. Because the sound will be different, always. It will always be a new sheet music, right, let’s say. In that week, you’ll have already edited the videos, seen its whole way… The performance starts right there.
Risadas.
Laughter.
FL: Aí apresenta e guarda a memória de novo.
FL: Then you present it and keep the memory again.
Risadas.
Laughter.
FL: Aí eu acho que vai ter esse equilíbrio do sincronismo, mas com o "dissincronismo" também. Que dá uma abertura maior pro improviso.
FL: Then I think there’s this balance of synchronicity, but with the “disynchronicity” as well. Which gives room to improvisation.
TS: É, é. Você se propõe um tempo de composição curto, porque você poderia ficar fazendo isso, com esse vídeo, durante o ano inteiro.
TS: Yes. You propose a short time for composition, because you could keep doing this, with this video, for the whole year.
FL: É, aí já ia virar um, sei lá...
FL: Yeah, then it would become a, I don’t know...
TS: Uma composição... | FL: Na minha cabeça, já vira uma composição.
TS: A composition... | FL: In my head, it becomes a composition.
TS: Eu vejo como uma composição também, por isso tudo que você está falando.
TS: I see it as a composition as well, for everything you are saying.
FL: Sim.
FL: Yes.
TS: Mas aí você se coloca num abismo de querer recompor e recompor…
TS: But then you find yourself in an abyss of recomposing and recomposing…
FL: É. Fica essa vertente da improvisação também.
FL: Yeah. One side of improvisation.
TS: É.
TS: Yeah.
TS: Acho que tem tudo a ver. Tem sempre uma tensão entre improvisação e composição. Quando eu escolho o instrumento, já tem algo de composto; você escolhe o lugar, já tem algo de composto; escolhe o equipamento; quando escolhe com quem vai tocar, já tem algo de composição. Esses dias, o Rogério falou: "a improvisação livre não existe, é uma grande utopia e é um modo de pensar uma coisa", porque…
TS: I think one thing has to do with the other. There’s always this tension between improvisation and composition. When I choose an instrument, there’s something of a composition there; you choose the place, there’s composition; you choose the equipment; when you choose who you are going to play with, there’s a composition. The other day, Rogério said “free improvisation doesn't exist, it’s a great utopia and it is one way of thinking”, because…
FL: É, é uma vertente musical, né? | TS: Nunca é livre disso, por exemplo, você não está livre da bateria. Você não está livre de tudo o que você já fez com a bateria.
FL: Yeah, it’s a musical genre, right? | TS: It is never free from that, for example, you are not free from the drums. You’re not free from everything you’ve done with the drums.
FL: É, e o próprio estilo também, né?
FL: Yeah, and the style itself, right?
TS: Estilo, tudo o que você ouviu na sua vida.
TS: Style, everything you’ve heard in your life.
FL: É, não tem nada de livre na improvisação na verdade, né?
FL: Yeah, actually, there’s nothing free in improvisation, right?
RC: Ah, acho que tem. A maneira como você constrói. Você pode conhecer o instrumento, e tocar ele várias vezes, e saber o timbre que faz, onde toca e tal. Acredito que é isso pelo menos, você monta as coisas de acordo com o momento que está acontecendo, mesmo você tendo conhecimento.
RC: I think it does. The way you built it. You can know the instrument, and play it several times, and know the timbre it makes, where you play it and everything. I believe this at least, you assemble things according to the moment when it’s happening, even though you have the knowledge.
TS: Sim.
TS: Yeah.
RC: Então aí é que se torna livre, porque você vem completamente aberto, né? Receptivo pra ocasião.
RC: So that’s when it becomes free, because you come completely open, right? Open to the occasion.
TS: É.
TS: Yeah.
FL: É.
FL: Yeah.
RC: Mesmo você já conhecendo o que a outra pessoa toca, será que ela vai realmente fazer aquilo?
RC: Even though you know what the other person plays, will they really play like that?
RC: E às vezes não faz, e você entra no jogo…
RC: And sometimes they don’t, and you enter the game...
FL: Mas parece que ela é mais livre dos elementos musicais, ritmo, harmonia, melodia…
FL: It seems like it’s freer from the musical elements, rhythm, harmony, melody…
TS: É mais fácil se libertar disso, que o Derek Bailey fala de livre, de se libertar do gênero, do estilo...
TS: It’s easier to free oneself from it, what Derek Bailey says about freedom, freeing oneself from genre, style…
FL: Do que da…
FL: Than from…
TS: Do que da sua biografia, do seu instrumento...
TS: Than from your biography, your instrument...
RC: Ah, é…
RC: Oh, yes…
FL: Porque você já entra com a cabeça de fazer um lance abstrato, não sei como dizer...
FL: Because you begin thinking to do something abstract, I don’t know how to say it…
TS: É, menos impregnante no sentido do…
TS: Yeah, less impregnated in the sense of…
FL: Isso, isso…
FL: That’s it, that’s it …
TS: Do ritmo, da frase...
TS: Of rhythm, phrase...
FL: Então isso já te coloca numa gama de começo, meio e fim, do que você pode fazer, sabe?
FL: Then that already puts you in a range of beginning, middle and end, of what you can do, you know?
RC: Não, eu sei, eu estou dizendo que tem todo esse lance que não é livre, que é uma coisa certa que você sabe que acontece, mas, ainda assim, você consegue ter seus momentos de liberdade ali dentro. Eu não acho que é um negócio perdido assim, que não existe improvisação livre.
RC: No, I know, what I’m saying is that there’s all these things that are not free, which is something that you are certain that it happens, but, still, you get to have your moments of freedom in there. I don't think it’s a lost thing like that, that it does not exist free improvisation.
TS: Acho que não foi isso que eu quis dizer. É que muito mais do que uma coisa real, é uma postura, uma tentativa.
TS: I think that is not what I meant. It’s that much, more than a real thing, it’s an attitude, an attempt.
RC: Sim.
RC: Yes.
TS: Onde é que está essa coisa que, de fato, é livre? Talvez é uma eterna tentativa de se libertar.
TS: Where is this thing that is, indeed, free? Maybe it’s an eternal attempt of setting free.
RC: É como viver, né?
RC: It’s like living, right?
TS: Sim.
TS: Yes.
RC: Você sabe que você vai acordar, escovar os dentes e tal, mas, de repente, pode acontecer alguma coisa diferente antes de você fazer isso.
RC: You know you are going to wake up, brush your teeth and all, but, suddenly, something different can come up, before you do that.
TS: É, sim... E a gente pratica improvisação livre num esquema estritamente musical, né? Porque se a gente pensar, o que faz a música é uma ação corporal, por exemplo, você tem que movimentar o corpo, a mão, pra apertar mesmo que seja um botão. Estender isso pra ação, pra esse começo, antes de o som soar. Você tem que agir, corporalmente, e se esse livre for desde aí, então eu posso brincar de outras coisas, posso desligar seu instrumento, posso andar em círculos, e isso vai gerar uma outra leitura em quem está fazendo, de estranheza da situação... A gente é bastante limitado nesses formatos assim.
TS: Yeah, yes... And we practice free improvisation in a strictly musical scene, right? Because if we think, what makes music is a corporal action, for instance, you have to move your body, your hand, to push the slightest button. Extending this to the action, to this beginning, before the sound resonates. You have to act, physically, and if this freedom starts right there, then I can play with other stuff, I can turn off your instrument, I can walk in circles, and this will generate another reading on the other person, an oddness in the situation… We are quite limited in that kind of formats.
IM: Teve alguma novidade pra você, Flavio, na questão de executar hoje?
IM: Are there any news for you, Flavio, in playing tonight?
FL: Novidade?
FL: News?
IM: Se teve alguma surpresa de você executar hoje.
IM: If there’s any surprise for you in playing tonight?
FL: Eu acho que tudo é uma surpresa, né? O lugar aqui já é… intimidador.
FL: I guess everything is a surprise, right? This place here is already… intimidating.
TS: Intimidador?
TS: Intimidating?
FL: Assim, engolidão, São Paulo... Tocar sozinho já é. Um desafio também.
FL: Like, swallowed, São Paulo… Playing by yourself already is. A challenge as well.
TS: Hoje que eu percebi. Eu já tinha vindo aqui várias vezes, e hoje que eu percebi que a gente está enfiado, né?
TS: I only noticed today. I’ve been here lots of times, and only today I realized that we are tucked, right?
FL: É, parece que você está num vale. | TS: Cercado.
FL: Yeah, it’s like you’re in a valley. | TS: Fenced.
IM: É, eu sempre falei que era um buraco. | TS: Tive uma percepção diferente hoje.
IM: Yeah, I’ve always said this was a whole. | TS: I had a different perception today.
FL: Traz essa sensação de...
FL: It gives a feeling of...
TS: Parece que as paredes, hoje, ficaram mais… Pff.
TS: It seems like the walls, today, got more… Pff.
FL: É, quebrar tudo aqui…
FL: Yeah, let’s smash it up...
TS: Eu sempre tinha visto o contrário. Achava expansivo, hoje estamos… fechados…
TS: I had always seen the opposite. I thought it was expansive, today we are… enclosed…
FL: Reativei esse synth aqui, que é uma das primeiras peças que eu comprei. Estou bem empolgado pra fazer esse set e estava a fim de ver como ia ficar nesse telão. Ah, tudo surpresa.
FL: I reactivated this synth here, one of the first pieces I bought. I’m quite excited about doing this set and I was curious about seeing how it would turn up in this big screen. Ah, everything was a surprise.
FL: Evento do ano!
FL: Event of the year!
TS: Evento do ano…
TS: Event of the year…
TS: E a textura? Você curtiu, das paredes?
TS: And what about the texture of the walls? Did you like it?
TS: Tem uma textura interessante a parede, né?
TS: It has quite an interesting texture, right?
FL: É.
FL: Yeah.
TS: Mancha o vídeo.
TS: It stains the video.
FL: Ficou foda, né? Foi você, né, Iago, que falou?
FL: It’s sweet, right? It was you who said it, right, Iago?
IM: Sim.
IM: Yes.
FL: "É, mas a parede já vai dar uma textura". Nem precisou dos plugins.
FL: “Yeah, but the wall will give it a texture.” I didn’t even need the plugins.
TS: É. Aquela é bem mais limpa.
TS: Yeah. That one is a lot cleaner.
IM: E essa sua bateria do seu coração?
IM: And what about these drums of your heart?
TS: Qual?
TS: Which ones?
IM: A bateria. Você sempre toca com ela.
IM: The drums. You always play with them.
FL: Meu xodó…
FL: It’s my love...
TS: Essa caixa é diferente? Ou você sempre usa ela?
TS: Is this snare drum different? Or do you always use it?
FL: É, eu tenho usado mais ela. Eu uso essa e uma meio vermelhinha assim, menorzinha.
FL: Yeah, I have been using this one more. I use this and another reddish one, smaller.
TS: E o set mais restrito da bateria? Você tinha pensado em limitar isso?
TS: And what about the more restricted set of the drums? You thought of limiting that?
FL: Limitar, sim, porque eu estava tentando buscar uma maneira diferente de tocar, menos explosiva, com menos volume. Potência sonora mesmo. Só que com bastante ruído eletrônico.
FL: Limiting, yes, because I was trying to find a different way to play, less explosive, with less volume. Sound power really. But with lots of electronic noise.
TS: Exploração de timbre, né?
TS: Exploring timbre, right?
FL: É.
FL: Yeah.
TS: Bem legais os piezos. Tinha uma coisa dos sinos, que eu não sei se você usou agora. Teve uma hora, no começo, que você estava raspando, ficou bem interessante.
TS: The piezos are really cool. There was one thing with the bells, I don't know if you used them right now. There was once, in the beginning, when you were scratching, it was quite interesting.
FL: Era isso aqui. Ficou o pesinho grudado. Na real, acho que é melhor colocar mais pra baixo. Trampar com piezo é foda, né? Você faz um, aí já tem que ir em casa e…
FL: It was this here. They were attached. Actually, I think it’s better to put it lower. Working with piezos is hard, right? You make one then you have to go home and…
TS: Trazer outro.
TS: Bring another.
RC: Não, você já tem que vir com o outro, né?
RC: No, you have to come with the other one already, right?
Risadas.
Laughter.
FL: É, esse aqui parou já. Não durou a passagem de som.
FL: Yeah, this one is dead. It didn’t last the soundcheck.
TS: Frágil, né? Mas é pra isso, eu acho, é legal quando quebra.
TS: Fragile, right? But that’s what it’s for, I guess, it’s nice when it breaks.
Silêncio.
Silence.
FL: E vocês? Qual a surpresa para hoje?
FL: What about you? What is the surprise tonight?
Risadas.
Laughter.
IM: E aí, tá aprovado esse negócio aqui?
IM: And what about this thing here? Do you approve it?
FL: Ah! Gostei, hein!
FL: Oh! I like it, huh!
Risadas.
Laughter.
IM: Foda, Flavio. Valeu, cara.
IM: Cool, Flavio. Thanks, man.
FL: Valeu, viu, mano? Agradeço muito, ficou muito legal. Vai ser muito legal.
FL: Thank you, all right, man? I really appreciate it, it looks so cool. It will be so cool.
IM: Vai, cara. Depois você me passa o vídeo que aí eu misturo na edição. Eu acho que tem a ver, com você tocando.
IM: It will, man. Then, can you give me the video so I can mix in the edition? I think it has to do with what you’re playing.
—
Performance:
Flavio Lazzarin
Captação e tratamento de som (Sound recording and treating):
Thiago Salas
Edição e imagens coloridas (Edition and colored images):
Flavio Lazzarin
Edição e imagens em preto e branco (Edition and black and white images):
Iago Mati
Texto/Transcrição (Text/Transcription):
Amanda Obara